terça-feira, outubro 30, 2007

Um rio

A mão de Deus é invisível e caprichosa
e ao homem só cabe a lástima
de ter por tempo uma vida apenas:
nada mais, e nada menos.

De tudo que existe, nada é do homem,
triste e perene nas tumbas de asfalto.
Sua é a ilusão e a impotência
como o deserto sem vida e hostil.

Resume-se a querer e não poder
esse infindável tormento sentido.
E por que te quero e porque te perco
sou como dois lados de um rio sem ponte.

Quase num repente soube que te queria.
Perfurmar teus braços como almíscar doce.
Meu peito e tua tez como o rio e o leito do rio
juntos até que o último luzir se torne trevas.

Estou triste: eu sou toda a tristeza.
O que é o grande infinito,
além de uma infinitude de nadas?

Eu tive um sonho desvairado.
Sonhei que havia sonhado a vida toda
e só acordara quando fitei os olhos teus.

Eu quero adormecer de mim pra sempre
e acordar em ti a cada manhã:
ser o Sol que ilumina teu acordar.

Eu sou como dois lados de um rio sem pontes.
Dois lados de uma moeda: tão perto e tão longe.
Eu sou como um monte numa terra sem montes.
Dois lados de um rio sem ponte.

sábado, outubro 20, 2007

Scars of Time

"Insanity leads to chaos
then to solitude...
The fruitless effort of adding
meaning to what is meaningless.
A lone, crimson tear
falls to the sea...
The echo of the remaining star
cries out in the infinite vacuum;
the least I can do
is send my distant prayers
over the wind of time,
setting sail on dreams".

From the Chrono Cross Opening, "Scars of Time"

domingo, setembro 02, 2007

Sierra Madre

Se eu aprendesse a língua dos pássaros
pousaria por sobre a flor mais rara,
estenderia minhas asas até Sierra Madre,
me entorpeceria com os Tarahumara.
Mas só sei a língua da saudade.
Eu molharia teus cabelos negros;
se eu fosse a chuva do verão pesada.
Encharcaria teus seios lânguidos,
a beber de tua pele suada.
Mas só sou a terra árida.
Quisera eu ser a brisa primaveril
a entrar pela sua janela entreaberta
testemunhar sua nudez de Vênus
e refrescar-te a tez desperta.
Mas eu sou o frio do Inverno.
Ah, eu queria ser o mais ínfimo
dos bordados em teu avental,
a mais definhada das folhas amarelas
que tecem tapetes no teu quintal.
Mas meus sonhos são grandiosos.
Confesso a minha vil inveja
do menor caco do espelho quebrado
que testemunha tua fúria e angústia
mas que esteve já ao teu lado.
Mas só testemunho a distância.
Pássaro que voa tão livre, ensina-me
a canção que canta tão saltitante.
Leva o meu medo, toma minha dor:
essa infinita dor de amante!
Porque sou toda a minha dor!
Felix

terça-feira, abril 17, 2007

Outonal

Nada me toca porque sou tardio.
Eu sou o sol num pulsilânime dia invernal.
Os olhares alheios não me tocam,
assim como as ondas
jamais alcançam o topo dos platôs.
Minha pele platinada
não mais pode ser ferida;
uma vez que sofrer é sentir,
e já não sofro; tampouco sinto.

Minhas mãos já não podm ser aquecidas.
São pólvora encharcada:
salitre imprestável.
Sou forte como um carvalho
mas velho e triste como os jatobás,
e também exalo o perfume dos eucaliptos
envelhecidos e secos do solo exaurido.
Meus olhos são impenetráveis e negros
como o fundo dos oceanos azuis.
O sal de lágrimas coaguladas
é o que sobra
aos que se aproximam.

Meu movimento é invisível,
é o vento que carrega
as agruras do milho esfarelado
em moinhos na Holanda.
Passo por entre pessoas apressadas
e nem me notam.
Mas me sobram os pássaros
que me seguem sem destino
porque sabem ser livres,
belos, tristes e passageiros.
A única diferença espantosa
entre eu e os pássaros
é que não fujo do Inverno.

Sou tão belo e tão notável
como o é um ipê em pleno Outono.
Eu sou o Outono:
que não carrega o frio do Inverno,
nem os botões da Primavera,
e menos ainda o calor veraneio.
Esse ano o Outono veio mais cedo.

Leandro Felix - still awake... I'll continue to move along, cultivating my own non-sense... Welcome to the wastelands, where you'll find ashes, nothing but ashes. Still awake, bringing changes, bringing moviment, bringing life. The silent plain, along the way, desappearing in the air... rising, sinking, raining deep inside me. Nowhere to turn... I look for a way back home...
It's rainin', rainin', rainin', on the streets of New York city, it's rainin', rainin', rainin' deep in Heaven... (Dream Theater - Trial of Tears - Part III: It's Raining)

Faça de conta (Make Believe)

Faça de conta
que a solidão aduaneira de nossos dias
destituiu-se como folha no Outono tenro,
e nosso querer brotou
como semente guardada
esperando as lágrimas das nuvens.
E tente acreditar
que as calejadas palmas das minhas mãos
se aproximam de tua fronte serena
em um carinho novo e antigo:
novo como a brisa,
mas antigo como a própria velhice.

Faça de conta
que o calor da minha ávida boca
é por demais ainda capaz
de fender o gelo tenaz da alma tua,
e alimentar o rio imorredouro
que fatigadamente corre nas perdidas eras
estatelando-se farto
de teus seios até teus joelhos.

E faça de conta
que os lírios ainda perfumam teus cabelos
quase desdenhados
pelo ditoso sorriso de quando por presente
da terra os colhi.
E se os lírios podem figurar
por entre os fios negros, se podem
iluminar fios escuros como os olhos da noite,
talvez possam nas veredas
iluminar também minha tez tristíssima.

Também faça de conta
porque peço e porque é possível
que o lume da noite observa do infinito céu
o nosso sôfrego beijo
como um gato negro que observa a própria noite
e o próprio beijo, que é parecido
com um faz-de-conta sem culpa,
sem âmbito nem ambigüidade:
é só um querer baldio,
como quando a chuva deseja cair no fim da tarde
e o sol quando enseja o nascimento na aurora gélida.

Peço: não porque posso,
já que a noite não pede para ser a noite,
e o rio não pede licença para passar.
Peço porque não é muito o que quero,
e posto que seja somente
um faz-de-conta. Faça de conta.
Meu coração é pata de lobo
atravessada pela ferro frio,
e minha alma semente na terra estéril;
meu corpo é madeira seca em chamas,
e estala com o calor emenado dela.

Deixe algo mais:
alivie meu tormento de mil trovões
retumbando num abismo sem fundo;
retire minha tristeza de rocha
mil anos ferida nas tempestades bravias;
apenas cerre a cortina de teus olhos infinitos
e acredite.

Leandro Felix - make believe, make believe, make believe...


segunda-feira, março 05, 2007

Pierrot

O que te sobra, Pierrot,
quando acaba o baile e a banda cessa,
quando amanhece e a aurora se apressa
para onde vais embriagado?
O que te resta, Pierrot,
na hora em que a luz intensa faz nítida
as maquiagens desbotadas e o suor,
e o pior:
as fantasias que não sobrevivem à luz
da realidade verdadeira,
ao fim,
da marchinha derradeira.
O que te resta?
A bebida que é finda?
Numa garrafa inseparável, consolo triste
de um coração tão solene,
mas que não durará eternamente;
porque a dor é eterna
e a fantasia perene.
As lantejoulas partidas,
as serpentinas desfeitas, descoloridas.
O salão vazio, as ruas vazias.
Acaba o Carnaval, tudo passa,
só não passa, Pierrot,
o teu sofrer.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Ciranda

Ciranda

I - A chuva

A chuva desprende suas gotas pesadas
e ensina
que é pouco o tempo para o erro
e nenhum para o arrependimento.
A chuva não erra, apenas cai.
Faz o que é de sua natureza.
E nós temos tanto de humanos
e tão pouco de chuva.
Caímos tão depressa
e nos levantamos tão tardiamente.
A chuva está acima do mundo
e das coisas mundanas: é divina.
Nós tão fugazes, como chuva,
mas tão mundanos e concretos.
Na verdade sei que
o que entedemos da chuva
são apenas as lágrimas.

II - O mundo

O mundo gira. Sempre.
Mas quando eu estava imerso
na profundidade de teus beijos
o mundo parava.
Mas agora o mundo quer girar
e girar e girar e girar.
E eu sempre atordoado...
Alguns acreditam com espantosa firmeza
que o mundo gira ao redor deles
e existe só para si.
Mas o mundo faz o que sabe: girar,
e nós não sabemos o que fazemos.
Por isso destruimos o mundo,
por inveja e confusão.

III - O tempo

Quando envelhecer
eu quero a minha infância de volta.
E também quero esses momentos novamente.
Quando a morte se aproximar severa
eu lembrarei apenas de fragmentos.
Mas eles não voltam.
Nada volta. Tudo muda.
O que fica é a lembrança
divina e mortal, bálsamo e veneno:
sempre nos assombra
o que jamais seremos outra vez.
Mas ainda temos como a um sonho
o passado, esse amigo traiçoeiro.
O tempo apenas passa, calmo.
Mas o homem não quer ver o tempo passar:
por isso apenas mata o tempo.

IV - A vida

E o passado talvez não seja o suficiente,
mas é o caminho que a vida desenhou.
Saberei um dia se é exato ou abissal
mas será tão tarde então;
terei a memória fugidia.
Mas tu és como a chuva,
cumprindo o teu propósito:
alegrar a muitos e entristecer a poucos
que não sabem o significado da chuva.
És também como o mundo
a rodar a graciosa ciranda,
sorriso de criança.
Assemelha-te ao tempo:
passas e deixa tuas marcas,
ainda que ele envelheça os que marca,
você os rejuvenesce, porque é o teu dom.
Só teu e de mais ninguém.
Quando o tempo tiver cobrado de mim
a corvéia dos servos da vida e da morte, os humanos;
terei os dedos já sem força,
mas nos lábios trêmulos e murchos como uva morta
ainda caberá o gosto vivo
como se o tempo não o tivesse diluído,
o gosto doce e indelével
do beijo último teu.

Não é minha melhor poesia, mas é a mais sincera. Sei que você prefere a sinceridade que a estética. "É morena, 'tá tudo bem, sereno é quem tem a paz de estar em paz com Deus... Promessa cumprida".

terça-feira, janeiro 16, 2007

Hoje de Manhã
Alberto Caiero (Fernando Pessoa)

Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia por caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Assim tem sido sempre a minha vida, e
assim quero que possa ser sempre —
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Sobre dias e noites

Quando o sol deitar o seu flavo rosto
engolido no abismo de breu do crepúsculo
e a noite bramir a espada inclemente,
as estrelas estenderem o véu da noite
saiba que ainda aqui te espero.

Quando a aurora deitar a escuridão maciça
e o dia voltar a respirar a claridade,
tu acordarás não tão sozinha em algum canto
porque eu aqui sozinho ainda te espero.
nunca é só quem é aguardado.

Quando o fado veludo do erro passado
agora transformado em lágrimas desterradas
tomar teu rosto em águas dançantes,
não estará errada, posto que a augusta espera
remirá os teus pecados tristes.

E se o assalto deveras insosso e causto
dos anjos negros da morte invérnea
assolarem o último dos dias de teus anos,
proste-se em paz, conserva teu sorriso:
mas eu que fui espera dias e noites morro.

Felix
"Espero por quem quer que seja, desde valha a pena"

Dum spiro spero

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Eu e você

Me espere como se espera a uma carta anseada:
amando a espera e imaginando minhas palavras;
me recorde como se recorda um verão intenso,
esqueça minhas tempestades e guarde o meu calor.

Me queira como se quer a uma lua longínqua,
ainda que não me tenhas conserve minha luz.
Me tenha como tens a tua saudosa infância
que é só tua, e que ninguém relegue ao olvido.

Me perca como se perde um rei negro no xadrez,
com soberba e resignação vencedoras de quem ousa.
Me lembre como se lembra um primeiro beijo,
que ainda que só lembrança seja único e primeiro.

Me ame como te amo.

domingo, janeiro 07, 2007

Pensamentos

Pensei em me fazer Primavera
para espantar o seu longo Inverno,
colorir de cores vivas o teu frio eterno,
aquecer em chamas vivas tua palidez serena.
Imaginei me tornar estrada
para trespassar a distância ausente,
eternizar uma ponte entre toda a gente,
ligar as almas em sua solidão febril.
Queria ser todo Novembro ardente
enfrentar os desencantos do inabalável Agosto,
ser o sol a queimar o teu enrubescido rosto,
derreter a neve no cume dos medrosos corações.
Fazer-me certeza próxima e convicta,
a tua dúvida férrea despedaçar como vidro fino,
amendrontar com a certeza o incerto destino,
ser o todo certo e a via clara e a terra firme.
Mas deixa estar, que o não precisar eu finjo,
o esquecer eu imagino,
e vou vivendo.
Felix